Ficção científica
- Que papinho mais espiritual o seu, hein?
As duas riam na cozinha. Ela contava a amiga suas últimas tentativas - e fracassos.
- Carma - só pode ser, disse, dando um baforada de cigarro - É como se tudo fosse ficção, sabe?
- No estilo folhetim?
- Antes fosse: é ficção científica.
- Antes fosse nada: folhetim é deprimente. Ficção científica sempre pode sair uma coisa Barbarella e aí a coisa muda de figura.
- Ou a coisa sai da sua barriga!
- Você tá grávida?!
- Não, mas pensei no Alien e em toda aquela sujeira e bagunça.
Ela lembrou, enquanto lavava a louça lentamente. Por quê? O urso panda de pelúcia - panda não é urso - com o post-it cor-de-rosa na barriga:
"Não-confiável!", dizia solene - ou diziam aquilo sobre ele?
Bem que devia ter desconfiado. Observou o resto de polpa de mamão, boiando dentro da pia entupida. A água escoava lentamente, mas tão lentamente que era quase imperceptível. Talvez não estivesse escoando de fato, mas ela não deu importância: lavou bem as mãos e deixou a pia como estava. Não deixou de notar as sementes escuras, que se emaranhavam estranhamente com fibras e fruta ainda macia. Pensou ver naquilo uma pequena criatura marinha, uma dessas só encontradas há muitos metros de profundidade. Mas boiava em sua pia, então não podia ser. E mesmo que afundasse, ainda não poderia ser.
- E este é o meu quarto - ela tinha dito, sabendo ser óbvio o que dizia e sabendo no que aquilo ia implicar.
O urso panda de lembrete. Começou a cortar cebola e nada das lágrimas virem.
- No more tears,
tinha cantado Ozzy em algum momento. Era a mesma história do shampoo infantil, mas ela estava crescidinha já para aquilo, embora nunca para Ozzy. Seu urso de chamava Ozzy - e ele não era confiável. Ouviu um barulho vindo da pia: algo parecia ter borbulhado. Um barulho alto. Ela abandonou as cebolas sentimentais sobre o balcão: não viu nada na pia. Mas... Não pode deixar de cismar que o emaranhado de sementes e fibras e polpa parecia ligeiramente maior. Seus olhos, seu olhar. Distorcido e
"Não-confiável!"
Voltou para as cebolas, solenemente. Um pernilongo gordo pousou em seu ombro descoberto.
ZAP!
Um pequeno ponto vermelho... sangue. E os restos do inseto, esmagado contra o ombro moreno. Vai até o banheiro, pensando na conversa que tivera com a amiga, na cozinha. No espelho, só vê os grandes olhos escuros, de uma ansiedade tão contida que ela poderia explodir a qualquer momento. Lava o rosto, o braço.
Há quanto tempo...
Do banheiro, ouve outro borbulho, mas dessa vez, mais forte. Ela não se importa: agora são seus ouvidos que a enganam. Volta para as cebolas, não sem antes voltar o olhar para a pia entupida: a água não tinha escoado, mas nem sinal do emaranhado de sementes. Ela dá costas para a pia, vai cortando as cebolas, solenemente. E ouve mais um barulho, um último, um zunido alto, muito alto.
Era noite quando voltei para casa. Entrei pela janela dela. Uma faca no chão - sinais de luta? Me aproximei lentamente, atento a qualquer sinal de perigo, pronto para qualquer coisa. Mas tudo estava em silêncio. Tudo morto. Corri ao ver o corpo dela caído no chão, meio comido. Lambi-lhe os dedos, como se pudesse ressuscitá-la - tinha assistido o segundo Batman no dia anterior. Sobre o balcão, as cebolas choravam.
Comentários
Abraços e bom carnaval.