Clara e a epifania


Ele já estava a uns três quarteirões da casa de Clara quando se deu conta: havia esquecido alguma coisa lá. Não conseguia se lembrar do que era nem se esforçou muito para tal. Instintivamente, sabia que precisava voltar. Tocou a campainha duas vezes. Clara atendeu. O seu espanto ao vê-la foi genuíno. Quem mais poderia atender senão ela? Muito séria, transbordava aquela lucidez e aquela verdade lancinante. Ele pensou ter dito algo como “oi”, mas não estava muito certo. Um moletom qualquer. Shorts. Pés descalços. Cabelos soltos e bagunçados – ainda úmidos. Tinha um halo de sono e de morte – embora seus olhos, incandescentes, chispassem vida.

- Ah! Os livros?
Ele fez que sim com a cabeça. Estava tonto: nunca a tinha visto tão bela nem tão letal. Quer dizer algo, mas não sabe o quê. Preferiu não dizer nada. Queria encontrar as pupilas em seus olhos escuros, mas não conseguia. Eles pareciam querer tragá-lo para sabe-se lá onde. Um oceano de possibilidades talvez. Convidou-o para entrar. Ele aceitou hesitante. Ficou de pé junto à porta, com medo de se perder entre as pilhas de livros.

Pega numa estante cinza Senhora. De dentro de uma caixa, tira Um copo de cólera. De uma gaveta, o surpreende com Mrs. Dalloway. Sobre a mesa, numa pilha, A insustentável leveza do ser, Dom Casmurro e As horas nuas. Por fim, pegou um caderno com alguns poemas de Drummond, Bandeira e Castro Alves.

- Acho que é isso.

O silêncio imperava e ele a contemplá-la. Quem era ela? Não lembrava se aquele gosto dos lábios de Clara – que agora pareciam se concretizar junto aos seus – eram do que tinham vivido ou do que desejava agora. Não conseguia distinguir o que tinha vivido (teria vivido?) do que tinha sonhado - ou estava sonhando? Como podia tudo aquilo? Se conheciam há algum tempo, disso sabia. E ele não se lembrava de tê-la visto daquele modo. O despudor das mãos. A nudeza do rosto sem pintura. A ausência de qualquer perfume. Era simplesmente Clara na sua complexidade e completude.

- Quer um chá?

Fora surpreendido pelo convite que o chamava docemente a realidade. Viu um esboço de sorriso e hesitou. Um chá implicaria ir até a cozinha. Conseguiria sair de lá depois? Não trouxera novelo nem migalhas de pão para demarcar o caminho a ser feito dentro do apartamento de Clara.

- Não, obrigado.

Sem demonstrar qualquer emoção – tão diferente do seu jeito efusivo de sempre –, ela entregou-lhe a pequena pilha de livros e era como se Clara lhe entregasse a si mesma naquele momento. Ele quis tocar-lhe de leve a mão, mas ela recuou. Impassível e impossível.

- Acho que era só isso.

Ela concordou com um suave meneio de cabeça. E ele logo saiu. Clara fechou a porta sem olhar-lhe uma última vez. Saiu do apartamento com os livros desejados, mas a sensação de que esquecera alguma coisa permanecia.

Comentários

Cayo Candido disse…
A gente sempre deixa alguma coisa esquecida lá... Inconsciente e de propósito!
biel disse…
adorei!!!!!
está no meu top 3 capivara! hehehe!
teria ainda uma ou outra coisa pra falar, mas prefiro falar pessoalmente!
te vejo essa semana e te falo!

mas adorei!

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