Carpas noturnas
Sonhei que andava de braço dado com ele. Ele quem? Pouco importava, pois não me lembro de seu rosto. E desconfio que não tivesse. Me pagou um café num dia mergulhado em sol. Uma conversa vaga e sem graça. Mais sabor tinha o café do que ele - e sua falta de expressividade.
- Acho que vai chover...
Nos abrigamos num toldo e logo ventava tanto que por pouco este não era levado. Se estivesse acordada, teria tido medo? Sim, mas então eu não tinha medo porque sabia que era sonho? E sabia? De supetão a chuva parou e ele me puxou pela mão.
Estávamos na Praça do Relógio e vi que a água tinha alagado um buraco grande, de onde o mato crescia valente. As folhas cortavam a superfície e vi que havia mais vida lá. Eram peixes, mais especificamente carpas, negras e vermelhas e eu pensando:
- Mas o que vocês estão fazendo aí?
Ele me disse que elas deveriam estar num laguinho lá perto e que a chuva devia tê-las trazido. Não dei atenção e percebi que ele tinha medo delas. Meu nariz começou a sangrar coágulos de sangue. Antes de desaparecer ele me deu um lenço, a princípio recusado, mas logo aceito: o sangue que pingava deixava as carpas agitadas.
Continuei caminhando pelo terreno alagadiço, pensando nas carpas e não contendo o meu assombramento com aquele céu tão claro e lúcido. Ou era eu quem estava lúcida? Senti que era o fim dos tempos e que eu era o último ser humano na Terra. Aquele gosto de fim dos tempos, gosto de leite desnatado.
Sentei para descansar. O lenço encharcado de sangue e a grama de água. Fechei os olhos e me senti terrivelmente cansada. Queria voltar para casa? Que casa? Eu podia não ter visto muito, podia não ter visto tudo, mas sabia que as coisas tinham mudado para sempre. Queria me livrar daquele cheiro de sangue como tinha me livrado do café, dele e das carpas que misteriosamente o amedrontavam.
Acordei com o cheiro de sangue - e o travesseiro manchado de vermelho-sangue - naturalmente.
Comentários
Mas isso é papo para um post futuro meu :P