Diário: Sobre o ofício de professor [1]

Pense numa criança de seis anos, uma criança difícil. Briga com os coleguinhas, xinga, chuta, bate, mata aula (sim) e mente - demais da conta.

Minha atenção, afeto, jogos, canções e histórias... Tudo ele rejeita. É arisco, rápido, escorregadio. Sempre correndo, asas nos pés. Quando viu, já foi. Oi?

Ele vem chegando e a gente já fica com um pé atrás.

Ontem ficou de castigo. Hoje ele vem para minha aula com seu ar malandrinho e seu olhar esperto - ele é esperto, muito esperto - se senta numa das mesas redondas com os colegas. Explico para a turma que em duplas, vão ler "A Cartilha do amigo". A ideia é um ajudar o outro, por isso se sentam em duplas - uns já estão lendo, outros têm mais dificuldades.

Ele se senta com um colega igualmente peralta. A princípio, os dois disputam o livro:

- Mas eu não disse que era para dividir? Pra ler junto?

Eles resmungam, mas obedecem - será que por causa dos combinados que fizemos há pouco? Circulo pela sabe e percebo uma certa agitação na mesa deles. Me aproximo:

- Lê pra mim? - peço com carinho.

Ele se arruma na cadeira, faz uma careta, toma o livro nas mãos e começa, lentamente:

- O... a... que letra é essa?

- 'M, de Maria. Depois vem o 'i'. 'M' com 'i' dá...

- 'Mi'.

- Isso.

- O... ami...go ilu... mi... na nos...sa... vi... é um 'a'?

- Não, o 'a' não tem essa perna esticada lá em cima. Isso é um 'd' minúsculo.

- Mas depois vem um 'a', né?

- Aham.

- Hum... O... ami... go... ilu... mi... na nossa... vi...da.

- Muito bom! Estou orgulhosa de você!

Minha alegria é tão genuína quanto a dele. É uma alegria diferente e partilhada, que faz com que ele se acalme ma cadeira e comece a tentar decifrar os enigmas que seguem nas páginas seguintes. E o seu rosto ganha uma expressão que eu nunca tinha visto.

De cinco em cinco minutos, vem falar comigo.

- Posso ler pra você? - pede.

- Pode!

E então começa sua leitura, muito lenta e cuidadosa. Às vezes, me pede ajuda com alguma letra misteriosa, noutras, eu mesma ofereço ajuda:

- É a letra 'q'.

Passa o resto da aula assim: encantado - com o livro, com a sua capacidade. E eu, igualmente encantada, só observando do outro lado da sala.

Quer levar o livro para a sala de aula:

- Você vai fazer outra atividade na sala de aula. Amanhã você continua lendo para mim, certo? - proponho.

Ele sorri e aceita. Seus olhos brilham. Como se um mundo novo de descortinasse diante de seus olhos. O sinal bate, as crianças fazem fila e logo vão embora.

Mas ele não. Ele se deixa ficar. Me ajuda a arrumar a sala. Se permite um cafuné.

 Seu olhar sobre si é outro. Seu olhar é outro. E o meu também.

Amanhã, vai continuar a ler pra mim.

E que outras histórias será que o estão aguardando?

P.S. o olhar dele é mais um para a minha coleção de olhares. ele vem chegando e, agora, dou um passo a frente.


Comentários

Vinícius disse…
bela coleção essa de olhares.
Leandro Amado disse…
Fazia tempo que não dava uma passada aqui. Foi um link do Vinícius, no Twitter, que me trouxe. Valeu a pena, Lindo texto!

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