Luto

Judite arrumou o chapeuzinho no espelho. Caía-lhe bem aquela roupa. Fitou-se por alguns instantes diante do espelho. Haroldo apareceu na porta:
- Que horas é o enterro mesmo? – estava de regata branca, samba-canção, meias, segurava uma gravata.
- Às sete Haroldo – respondeu ela com impaciência – Já é a terceira vez que te digo.
- Desculpe – ele deu ombros, deixou a gravata cair.
- Não tinha nada menos discreto? – ela apontou com o indicador a gravata.
- O que tem de errado com ela oras? – sua barriga saliente palpitava de insegurança.
- Turquesa? Faça-me o favor Haroldo!
- Ah Judite! Não tenho nada que sirva pra enterro.
- Você deveria manter um conjunto só pra isso. Fica feio se vestir mal. Tem que estar bem até na hora da morte.
- Falando em morte... Que diabo de hora que o Rubens foi escolher pra morrer, hein?
- Ai que insensibilidade Dodô!
- Mas não é verdade? Justo no começo do ano!
- Fim de janeiro.
- Que seja oras! Estou sem um tostão pra comprar roupa melhor. Nem lembrança vou poder mandar.
- Querido, isso não é casamento – ela passou um batom castanhos nos lábios carmim, já murchos.
- Então tá – a passividade de Haroldo era a mesma de uma criança sem estímulo algum – Que horas é o enterro mesmo?
- Sete horas Dô! Você nunca presta atenção no que eu falo!
- Mas é claro! – ele parecia inconformado – Você é mulher, toda mulher fala, naturalmente, demais. Se eu for ouvir tudo o que você diz, meus ouvidos não dão pra mais ninguém!
- Então está bem: não falo mais nada – virou-se de costas pra ele, continuou no espelho.
- Ah minha Juju... Você sabe o que eu quis dizer...
- Não, não sei mesmo Haroldo de Melo Leite – disse ela com displicência.
Seu nome dito inteiro? Haroldo tinha um problema. Tentou amaciá-la:
- Ah Juju! Estou é nervoso com o enterro.
- Mas você nem ligava pro Rubens.
- Sim, isso é verdade. Mas estou é preocupado com essa maldita gravata turquesa! Não vejo o que há de errado com ela minha foquinha...
- Não me chame de foquinha como se você se importasse – ela interpretava seu papel de mulher. Caprichosa até os ossos – Essa gravata não tem personalidade – e pensou ‘embora você também não tenha’.
- Então o que eu deveria usar? – disse ele, para amolecê-la ainda mais.
- Algo sóbrio, mas ao mesmo tempo requintado, mas que não seja ostentoso.
- Tal como?
Ela deu duas voltas em torno dele. Parecia querer medir-lhe o tamanho. Combinar a cor dos olhos, com a dos cabelos, do terno e dos sapatos.
- Com que sapatos você vai?
- Hum... Com o caramelo.
- Caramelo? Você ficou louco?
- Qual o problema Tetê?
- Ah! Dodô, mas será que tudo eu tenho que falar? Sapato caramelo com terno preto! Faça-me o favor Haroldo!
- Fica tão ruim assim? – submissão ou insegurança? Os dois.
- Se fica! Cadê teu sapato preto, aquele de festa
- Eu não tenho nenhum sapato de festa Tê.
- Tá bem. Onde você colocou seu sapato preto?
- Tá na lavanderia. Precisa engraxar.
- Mas você não devia ter engraxado na semana passada?
- Mas a gente tava viajando Ju.
- Ah! È verdade... Mas você deveria ter feito isso antes da viagem então. Bom, isso não importa. Engraxe agora.
- Mas eu nem tomei banho Didi!
- E não vai ter tempo de tomar se não engraxar agora.
- Que bela hora que o Rubens escolheu pra morrer!- exclamou exasperado.
- É, de fato foi uma má hora. Acho bom você se apressar – olhou no relógio – fica feio chegar atrasado.
- Mas isso não é um casamento. Que diferença faz chegarmos mais tarde ou não?
- Em casos normais, nenhuma. Afinal o fulano já está morto de qualquer jeito. O tempo passou pra ele, né?! E também passa pra nós – olhou no relógio e completou – Mas como é você quem vai dizer as palavras finais... Bem – ela sorriu zombeteira – creio que é melhor que você se apresse.
- Ah é! Eu tinha me esquecido! Só o Rubens mesmo: me dá trabalho até depois de morto – colérico e acrescentando com indiferença – morreu de quê?
- É o mínimo que você deveria saber – uma pausa longa, gostava da expectativa gerada – overdose: tomou remédios por engano. Você bem sabe o quanto ele era distraído, trocou uns frascos e exagerou na dose.
- Modo idiota de morrer.
Ela assentiu com a cabeça. Tirou os olhos do espelho e virou-se para ele.
- Nossa! Como você está linda!
- Eu sei.
- Você fica muito bem de preto, sabia? Fica bem de luto
- Eu sei – ajeitou o chapeuzinho delicado. Puxou o véu sobre o rosto.
- Vai ser a enlutada mais bonita – sorriu e foi para o banho.
Sobre a cama, uma gravata cinza com linhas pretas. Judite se olhava demoradamente no espelho. De fato ainda era bonita e o preto só realçava ainda mais a sua beleza. Ficava tão bem de preto. Ficava tão bem de luto. Poderia haver mais luto. É, poderia sim. E por que não? Com Rubens, tudo muito simples. Velho como estava né?! Já viu. Muito mais fácil do que os últimos três. Pensativa. Fizera um favor, um favor de fato. Mas por que pensar daquela maneira? Não sentia culpa ou remorso, então para quê a desculpa? Só não pensava que Haroldo fosse lhe dar tanto trabalho, simplesmente para se vestir – Nem isso! Nem isso! Depois de Rubens, quem poderia ser? As opções diminuíam conforme aumentava o número de caixões. Pensativa sorriu. Sobre a cama, a gravata cinza com linhas pretas.

Forster, L.G. "Luto" In: Encontros e Desencontros. Rio de Janeiro: Br Letras, 2007.

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