Clariciando


- Você não me quis. Eu entendo e respeito isso.

Ela quis dizer, mas não disse: qualquer coisa que pensasse, dissesse ou sentisse soava por demais dramática. E ela já estava longe dos palcos há algum tempo - e assim queria permanecer.

Naquela mesma semana, tinha se perdido à noite, num bairro perto de casa. Estava a pé e tinha seguido na direção oposta a qual queria ir. Pensou que aquilo deveria ser um sinal. Os sinais brotavam. Eram frutos que caíam doces e apodreciam dolorosos nas calçadas.

Viu as pitangueiras vomitarem pitangas - era a vida que se entregava, se oferecia e a ofendia asperamente. Pensou em qualquer coisa que tinha lido de Clarice há alguns anos. Flashback literário. E sensorial. Sentira-se mal quando lera o texto. Sentia-se mal anos depois, agora, olhando as pitangas doces e podres. Azedume da vida. Cheiro de fim de feira. Cheiro de fim. Fim.

Seus vermes internos lhe faziam companhia. Cantavam-lhe qualquer coisa doce que agora ela não podia ouvir. Também não tinha fome. A fome ela via nas pessoas simples sentadas nos bancos e no olhar de alguns homens que a encaravam. A mocinha de vestido azul e batom vermelho que passeava de pernas de fora e olhar triste triste atrás dos óculos escuros. Para ela, não fazia sentido despertar desejo em meio mundo se o dono do seu nada sentia...

[borboletas de abóbora se chocam contra folhas ásperas e duras - a harmonia da natureza]

Tudo Parque da Luz, com sua luz branca fria difusa. Com seus coretos encantadores e silenciosos. Com Diana semi-despida e pombas negras pousadas nas árvores. Trilhas de grama e lama. Pensou na flor-de-lótus. É, talvez houvesse solução para a vida.

A jovem coreana com um lindo bebê a olhava desconfiada.

- Que perigo eu poderia oferecer?

Perigo. Ameaça. Medo.

- Você 'tá com medo de mim? - e o seu olhar era de uma ternura ímpar.

Cazuza tinha fugido. Era mais do mesmo. Ela era outra, mas a história se repetia. Uma repetição que tinha ido além, bem além dos intermináveis solos de guitarra. E, em seu caminho, a natureza se repetia e agora via sementes abertas, espalhadas pelo caminho, ostentando suas vísceras. Pareciam cérebros. As ideias vazando? Não, não havia seiva nem secreção de qualquer tipo. Eram cérebros esmagados: os passantes cumpriam seu papel e passavam por cima das sementes.

Sem frutos.

E a mesma sensação de Clarice, a mesma das pitangas, as sementes sem pensamentos.

E ela, sem alumbramento, sem encantamento, sem assombramento. Sem.

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