Entrelinhas de neon
Amanhecia. Os dois estavam olhando o sol nascer pela janela do quarto, deitados na cama.
- Nós últimos anos, venho colecionando olhares. Olhares masculinos - disse ela, arrumando o travesseiro.
- Isso soa tão esnobe! - ele riu - Então você acha que conhece bem assim a natureza humana?
- Ah. Acho que sei ver o outro, de verdade. Ler nos olhos as intenções, sabe?
- Sei - arrumou uma madeixa de cabelo dela.
- Quanto mais velho a gente fica, mais a gente aprende a esconder as nossas intenções, o nosso olhar. Mas conheço caras que olham para mim como se fossem adolescentes.
- E o que isso quer dizer? Que são indecentes? - ele riu.
- Ah! Nem tudo na adolescência é sobre isso - ela sorriu - A adolescência transborda, mesmo quando não quer. Não tem filtro. Mas tem gente mais velha que não tem filtro e aí fica ridículo - sentenciou.
- Você é muito dura. Porque alguém mais velho teria que viver nesse clima de continência e moderação? Por que a gente não pode ser passional?
- E quem quer ser passional? Dá muito na vista...
- O olhar de alguém também pode dar na vista, ora.
- Mas quem sabe ler? Quem quer ler? Está todo mundo muito ocupado com seu próprio umbigo, sua própria vidinha.
- Você é muito dura.
- Eu poderia passar a vida apaixonada por você e você podia nem reparar, por estar ocupado com seu mundo.
- Se você fosse passional e jogasse tudo abertamente eu ia reparar - ele considerou.
- Mas aí ia incomodar. Te incomodar. Me incomodar. É preciso ler nas entrelinhas e, às vezes, o que está nas entrelinhas brilha em neon.
- Olhar também incomoda - refletiu ele.
- E a ausência do olhar mais ainda - ela sorriu triste, se levantando - Vou fazer café. Quer chá?
- Mate.
- Ah! Acho que o olhar sempre entrega, mesmo quando você sabe mentir bem - ele ponderou.
- Não estou nem pensando em saber mentir, penso em esconder mesmo. Você diz uma coisa, seu olhar diz outra. Você diz uma coisa, seu olhar diz nada. Você fecha os olhos pra sonhar ou sonha no trânsito de São Paulo de olhos abertos e fica tudo na sua cara.
E foi para a cozinha.
O sol tinha terminado de nascer e iluminava tudo lá fora, assim como dentro da cabeça dele. Todavia, de um estranho modo, ele permanecia no escuro: não ousou perguntar a ela o que ela via em seu olhar. Havia o risco de ela acertar e ele não perceber.
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