Memória sonâmbula

Ele estava indo embora de Peruíbe. O frio e a chuva pareciam ter encurtado o feriado e decidira voltar para São Paulo. Tudo parecia vazio e ele seguia pela Mário Covas. Solitariamente. Não havia mais ninguém, a não ser as gaivotas, comendo restos de pizza de um quiosque.

Lá longe ele a viu.

Reconheceria aquelas pernas e aqueles cabelos em qualquer praia, em qualquer lugar. Era ela. O mesmo biquini vermelho dos velhos tempos. Mas um outro jeito de andar. Mas aquele corpo que ele trilhara e com o qual trilhara por tanto tempo ainda parecia o mesmo, mesmo depois de tanto tempo. E foi tomado por um não-sei-o-quê súbito, que o fez encostar o carro e descer com o casaco.

Ficou observando de longe.

Lembrou de várias coisas num turbilhão sufocante e quando a memória se aquietou, o que restou explícito na superfície, para quem quer que quisesse visse, foram as coisas boas. As melhores que ele tivera com ela - ou com qualquer outra mulher.

Não era romântico, não mais, mas algo o impelia a continuar ali. Mas mais perto. E foi caminhando.

Lá menos longe estava ela.Ventava muito e ela parecia estar dançando. Rodopiava. Sozinha. Queria ser visto, mas ao mesmo tempo não queria. Tinha sido tudo tão difícil para ambos que temeu que a tempestade que ensaiava solene sobre sua cabeça devorasse ambos e nada restasse.

Ela caminhava em direção ao mar e ele a acompanhava pela orla. Ela molhando os pés e ele sempre às margens. Por fim, ela mergulhou. Ele assistia de longe, sem ação.

Quantas vezes não tinham ido juntos para Peruíbe?

Ela saiu do mar, se enrolou numa canga, pegou a mochila e se despediu da praia com o aceno teatral. Ele continuava olhando... Até que ela viu que ele olhava. Endireitou-se e, inesperadamente, sorriu. Tanto tempo. E ele ficou lá, sem ação, seu pés criaram raízes e ela se aproxima, o passo firme e resoluto. E ela acena, com uma inexplicável satisfação. Tanto tempo.

Acordou com o corpo mole, amortecido. A garganta seca. Uma sensação estranha de formigamento. Conforto e angústia. Estava em sua cama, em seu apartamento, em sua cidade. Sozinho. E pensava se ela também tinha tido o mesmo sonho, onde quer que estivesse.

Em seus lábios, sentiu a areia trazida pelo vento. O cheiro fresco do mar tornava o quarto insuportável.

Comentários

Flávia Amaral disse…
Nossa, Frau... esse tocou lá no fundo.

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