Não, o tempo não tem cheiro de mofo.

Não é de mofo. Talvez papel velho. Livro, carta, caderno. Eu tenho essa coisa com papel - caixas com cartas, desenhos, rabiscos. E, em último caso, o tédio sempre dá lugar ao desenho. Mas não é preciso de tédio para desenhar. Os desenhos têm cheiro: giz pastel, lápis, tinta.

O tempo tem o cheiro de coisas da infância de coisas infinitas. A sopa de ervilha na panela de pressão. O inverno. Sim, porque o inverno tem cheiro também. O tempo também tem cheiro das pessoas que passam pela nossa vida. O perfume de patchouli que minha professora de pré I usava (Tia Cris, por onde andará?). Loção pós-barba do meu avô. Erva-doce.

O tempo tem cheiro de chuva e há exatos três dias pus o nariz pra fora de casa:

- Vai chover - sentenciei solene.

Choveu na quarta. Vi o céu desabar do topo do prédio. Vi o cinza se despedaçando com as gotas gordas. E naqueles últimos dias o tempo, o clima, o vento me deram uma sensação de coisa já vivida. Alarme da memória ativado. O céu se desprendendo do teto e há muito tempo eu não ficava tão feliz. 

Junto com a sensação de coisa antiga, tempo passado, veio uma onda de novidade que quase me tirou do chão. É tanta coisa acontecendo que eu nem sei mais o que ainda pode acontecer. É um desassossego de xícara de chá quente que conforta. Chá diferente. Outro gosto. Outro aroma. É uma coisa mais de dentro do que de fora, mas também está por fora e outras coisas caíram fora de mim. 

Um desapego de Rapunzel sem trança.

Comentários

MN disse…
muito lindo. wind of change. tbm tenho essas sensações.
Larissa disse…
dependendo, tem cheiro de mofo também. mas pra mim, mofo é cheiro da casa antiga, daquele pedaço da infância do qual eu até tento, mas não consigo me lembrar.

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