Cova rasa
Venha ver o pôr-do-sol - convido a quem quer que esteja interessado. Observo o cadáver mirradinho e seco à minha frente. O que fazer? O suor escorre delicado pela minha testa. Cavo uma cova, mas, por mais que eu cave, continua rasa. O que é que quanto mais se tira, maior fica? O buraco. Mas não é esse o meu caso. Antes tivesse eu esse prazer secreto de fugir às convenções. Mas não tenho.
Pode-se morrer de qualquer coisa. Tuberculose, desgosto, gripe suína, tristeza. Às vezes não se sabe a causa da morte. É esse o caso. O que houve com você, meu caro? Mandaram que fosse enterrado em uma vala qualquer. Que fazer? Aos olhos do mundo pode não ter sido grande coisa, mas um dia foi importante para mim. Um dia. E agora? Agora não sei o que fazer com esse seu corpo frágil que de nada mais me serve. Não carrego mais mortos. Mais um pouco e se tornará estorvo.
O cadáver perdeu aquela expressão de desespero do primeiro momento - morri?! - e agora parece tranquilo. Ainda assim, como que por um feitiço, parece que não vou conseguir enterrá-lo. Só parece. Empenho-me aplicada e há quem me ajude. A cova parece um pouco mais profunda agora.
Pode-se matar com qualquer coisa. Abridor de cartas, lança-chamas, corda, açúcar, bolinhos de chuva. Vai chover. Às vezes não se sabe porque se mata. Por que foi morto? Não se sabe. Só se sabe que foi morto. E não é a sua morte que me assombra, mas sim o mistério: O que? Por quê? Onde?
Olho para sua expressão infantil. Frágil, tão frágil. Foi frágil em vida, por que se tornaria forte na morte? Enterrar o seu corpo morto é enterrar o mistério da sua morte. Eu não quero mais saber. Eu não preciso mais. Então me deixa ir. Você agora é só matéria. Vai se dissolvendo na terra. Alimentar essa terra em que caminhamos. Fazer nascerem novas flores. Já passou o seu tempo. Vai tranquilo. E me deixa ir.
Vai chover. Uns pingos gatos-pingados sussurram qualquer coisa na brisa suave. Suspiro de cansaço. Cavei a cova mais profunda para te plantar e te fazer nascer em flor. Lírios da Paz. É o que eu quero. Não está tão profundo como deveria, mas descoberto o seu corpo não fica. E o tempo e suas areias, sua chuva, sua grama, vai crescer um jardim sobre sua matéria sem vida.
A certeza de que você existiu um dia é um fato. Entretanto, sua presença começa a ser dissolvida no tempo. Porque foi assim que decidi.
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