20 e poucos anos: Proteção
Cansei de ficar de pernas para o ar. Tibúrcio deitado sobre a minha barriga. Tão engraçado esse lugar em que ele gostava de ficar. Desta vez eu não estava com fome, então ninguém miava de dentro da minha barriga.
Tinha tido sonhos estranhos. Tanta gente e tanta coisa. Sonhei com você. Eu acho que eu ainda era algumas coisas, apesar de. Raul e o resto do mundo me diziam muita coisa. E eles tinham toda razão, mas eu ainda tinha uns ares sonhadores, apesar de. Claro, só questão de tempo até que fossem sepultados. Por ora, estavam adormecidos, enterrados sob o solo árido. Eram sementes que não germinariam tão fácil ou cedo. E eu nem queriam mesmo. Queria exterminar qualquer pessoa ou coisa que viesse a me causar dor de novo.
Raul tinha ido comprar frango assado. Ele tinha ficado uma semana fora e precisávamos colocar as coisas em dia. Ele não estava bem também. O que fazer quando nós dois estávamos em crise? Da última vez que aquilo tinha acontecido... nossa... fazia muito tempo. A noiva de Raul o tinha deixado. Eu me lembro de entrar no quarto dele: tudo revirado e Bon Jovi ao fundo. Eu teria rido se não fosse sério: Raul, sempre tão organizado e sóbrio... Ele estava largado na cama, nem chorava mais. Estava seco como eu. Não respondia nada, não comia, não reagia. E eu morrendo de vontade de lhe dar uns tabefes:
- ACORDA RAUL!
Ele não reagiu a nada do que eu lhe disse, mas reagiu a algo que viu: as marcas no meu rosto, nos meus ombros, nos meus olhos. Ele parou, saiu de dentro de si, sentou-se sobre a cama, como que acordando de um transe. Leu a vergonha nos meus lábios apertados.
De zumbi-coração-partido ele tinha se tornado o Incrível Hulk.
- Eu caí - disse quase que me desculpando, olhei para baixo.
- Eu não acredito no que eu ´tô vendo.
Ele me pegou pelos braços. Gemi de dor. Levantou a manga do braço esquerdo: o vergão verde-vergonha.
- Vou estourar esse cara!
- Não precisa, depois disso eu terminei tudo.
- Mas agora é a minha vez de terminar.
Ele saiu esbaforido do quarto. Tinha ido atrás dele. Mais tarde fui saber que graças a Raul, ele tinha ido parar no hospital. Briguei feio com Raul, disse que não iria perdoá-lo nunca. Eu detestava violência. Mas parte de mim se sentiu grata, muito grata. Era a maneira que Raul tinha de se importar. Uma atitude machista, claro, mas foi alguma coisa. A única coisa que fizeram. Porque as pessoas me davam conselhos toscos e nenhum deles sobre o que fazer se você leva uma surra do seu namorado aos 17 anos. E ninguém parecia se importar muito. E eu era tonta e fiz o que faz uma menina tonta de 17 anos: fugi.
- Eu quero lutar, mas não com essas armas.
Um dia eu queria explicar ao Raul, mas eu acho que não conseguiria me fazer entender. Nem me importei muito. Tibúrcio ronronava. Estava tão cansada de explicar as coisas. Tão desgastante. Era mais importante que ele soubesse o que eu sentia. E ele sabia.
Tocou a campainha. Pulei da cama. Tibúrcio foi se enroscando na minha blusa de meia malha, até que pudesse, por fim, pular para o chão e se esconder no cesto de roupas sujas da lavanderia. A luz de fora entrava lilás na sala, mas os móveis conservavam um ar de ouro velho, um brilho antigo. Por um instante, parecia que aquele brilho vinha de mim e refletia nos móveis.
- Mas que saudade! - agarrei Raul, quase derrubei ele e o frango.
Dei -lhe um abraço tão forte que ele não entendeu. Acho. Ele me deu um beijo na testa, abraçando a mim - e o frango.
- Entra, entra - eu disse, puxando-o pela mão.
Seu olhar estava baço, sentia sua força morrer conforme caminhávamos rumo a cozinha. Nada comparado a história do Bon Jovi, mas ele não estava bem.
Servi o frango e nos sentamos.
- Vamos conversar?
Raul fez que sim com a cabeça. O garfo sobre o prato. Seus olhos grandes e pretos conservavam ainda aquele hálito que me tinha conquistado desde o começo.
Ouvindo Quien es la que viene alli (Los tres)
Ouvindo Quien es la que viene alli (Los tres)
Comentários
Beijo e bom feriado, Frau!