20 e poucos anos: Descrenças
Estavam deitados um de frente para o outro. Olhos fechados. Lô interpelou:
- Você acredita em Deus?
Raul abriu os olhos e levantou as sobrancelhas. Sabia nunca poder escapar daquelas perguntas inadequadas
à queima-roupa.
à queima-roupa.
- O momento é inadequado? - Lô perguntou sem interesse.
- Acredito sim. Acredito em Deus - respondeu Raul num suspiro.
Um instante se passou, Raul esperançoso que ela tivesse desistido de seguir adiante. Mas resistir era inútil.
- Mas como você acredita em Deus se me disse outro dia que não acredita na humanidade?
- Ah, sei lá. Você quer mesmo falar disso agora?
- Sim, por quê? Não pode?
Raul pensou em dar uma resposta mal-criada, mas já sabia bem o rumo que as coisas tomariam.
- Se Deus criou a humanidade e você acredita em Deus, como não acreditar na humanidade?
- Não sei, Lô: as pessoas são incoerentes mesmo. Sou humano, é direito meu. Devia até constar na Constituição Federal ou na Declaração dos Direitos Humanos.
- Eu acredito em coerência interna. Acredito que, dentro de você, há uma explicação. Você só não sabe qual é ou simplesmente não quer me dizer.
- E por que eu não te diria?
- Porque são duas da manhã e você está cansado.
Raul riu.
- A coisa mais sensata que você disse hoje. Religião às duas da manhã?
- Você é o bom moço católico, Raul. Eu fugia da catequese, você sabe.
- Fugia pra comprar pipoca na praça.
- Gula: pecado capital.
Os dois riram.
- Eu acredito nas instituições católicas. Como o casamento. E o amor.
- Não sei como pode uma coisa dessas... Mas te respeito mesmo assim.
- É muito maior prova de amizade respeitar as descrenças alheias do que as crenças, eu acho.
- Eu não acredito no amor e ele não é uma instituição católica, meu caro - ela coçou o ombro nu - Não sei de onde você tirou isso.
- Okay, você está certa. Acredito na família.
- O bom modelo católico.
- Nuclear, você diz? Não, não. Falo dos valores.
- Cristãos e não católicos.
- Pode ser - considerou Raul.
- Mas não precisa ser cristão para ter bons valores.
- É, faz sentido - ponderou ele - Conheço uma pá de gente sem religião que é gente boa. Boníssima.
- Eu acredito em amizade. Acho que é uma das coisas mais importantes da vida ou, pelo menos, uma daquelas coisas em que eu realmente acredito.
- Eu acredito em amizade, mas não acredito em amizade entre homem e mulher.
- Ah eu acredito. Dá para não ter segundas intenções sim. De uma das partes pelo menos, acho.
- Não, não é assim que funciona.
Ela olhou através dele:
- Tenho fé na juventude.
Ele sorriu para ela, que continuou:
- Tenho fé em nós.
A ambiguidade tinha um gosto estranho. Indefinível como as palavras de Lô: entre o doce e o amargo. Continuou olhando um pouco mais para aquela que considerava sua melhor amiga. Lô se levantou, vestiu o pijama, largado na banqueta do quarto e saiu para a cozinha. Não, ele não queria um chá: queria passar mais alguns instantes calado e sozinho, pensando e repassando e matutando sobre tudo aquilo em que realmente acreditava.
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