20 e poucos anos: Úlcera
Para Raul
Me virei impaciente na cama e lá estava Raul, de boca aberta, babando como uma criança. Uma criança. Não conseguia dormir: minha cabeça letajava intensamente, meu peito ardia - literal e metaforicamente. O médico dizia que não era nada: eu devia ter comido algo muito forte que atacara meu estômago. Raul dizia que não era nada: eu devia estar exagerando nos problemas, como sempre. Hiperbólica. Ele, eufemismo. Nossas conversas ultimamente: pleonasmos espasmódicos.
Tinha me cansado dos homens que não me levavam à sério. Mas estava mais cansada ainda de ser sempre deixada quando mais precisava do outro. Que outro? Nem Raul mais queria saber. Meu melhor amigo, aquele que tinha sido o grande amor de minha vida. Troçava das minhas angústias e fazia pouco caso daquilo o que para mim era vital. De repente eu não podia exigir que ele entendesse
Estar em crise e mais uma vez sozinha. Estava na hora de tocar o meu barco sozinha, parar de depender dos outros, do apoio alheio, do olhar alheio. De nada adiantava dividir a cama ou a vida se ficava só nisso. Bom, talvez estivesse exigindo mais do que ele podia me oferecer. Fosse assim, Raul não mais me servia. Não que eu usasse as pessoas, mas ele não tinha então mais nada a me oferecer. E eu sabia o que eu podia oferecer - a ele ou a qualquer outro homem, a qualquer outra pessoa. E o que eu recebia dos outros? O que tinham a me oferecer? Tinha começado a pensar nisso e me assustei: me ofereciam muito pouco.
Talvez eu estivesse fazendo mesmo um grande drama em relação a nossa situação. Não tinha mais o que conversar. Acho que ele estava em outra. Com ou sem outra - isso não importava. Nunca tinha importado, bem, importara há uns anos atrás. Mas eu era outra. Ele, outro. E eu ainda me questionava sobre a natureza da nossa relação. Fosse qual fosse, tinha se tornado insustentável.
E eu me tornava uma pessoa pior quando estava ao lado dele. Era aquilo nos últimos meses. E a mesma insônia sinestésica e amorfa se arrastava por meses. E ele sempre aquele sono tranquilo, despreocupado. Me enraivecia. Tinha raiva de Raul por ele não me entender.
Me negava a me render aquele seu otimismo idiota e fútil - propaganda de tevê. Preferia sofrer o que precisava, mas ainda não aprendera a sofrer em silêncio. E ele também merecia silêncio. Não podia culpá-lo. De repente, não funcionávamos mais e detestei como as coisas se complicavam conforme envelhecíamos, como os relacionamentos se revelam mais complexos, complicados e conflitantes.
Cansei do conflito, do meu cansaço de Raul. Meu drama transbordava: não por conta das coisas em que estava imersa, mas por conta daquilo que Raul despertava em mim.
E ele não despertava. E era sempre eu quem tinha que acordá-lo.
Resolvi que era hora de deixá-lo dormindo. Melhor para mim e para ele. Não, melhor para mim. Não me importei com ele, só meu meu umbigo sem pudores, sem afeto. Se me perguntassem, não diria "fiz isso por nós". Essa história de ir embora pelo outro, pelo bem do outro era uma das maiores covardias que eu já tinha visto. E ainda via. E ainda veria tantas outras vezes. As pessoas não assumiam a si mesmas, seus reais sentimentos e intenções - e muito menos o fato de não se conhecerem.
Deixei Raul babando em sono esplêndido. Berço esplêndido. Silenciosamente (um milagre?), me vesti, peguei a mala desfeita e a refiz. Fui me refazendo. CDs, livros e paz de espírito me acompanharam porta a fora.
Ouvindo Quando fui chuva (Maria Gadú)
Comentários
Sabe, eu sinto TUDO isso aí. A queimação no peito, a sensação de que estou recebendo bem menos, a vontade de deixar o outro dormir e babar à vontade e enfim me calar, pra ver se finalmente vão entender toda a minha falação. Só me falta a coragem de fazer as malas.
Acho que não as faço, porque acho que por trás desse monólogo existe ainda muita coisa a ser pensada. Ou então eu esteja apenas esperando o dia em que as palavras se esgotem, embora eu desconfie que isso não irá acontecer comigo.
Texto foda!
Pra variar né... rs.
Um beijo. :)
Perfeito.
E a música? Também.