20 e poucos anos: Hoje não
Entrei no chuveiro sem pestanejar, esperando em vão que a água fervente lavasse tudo aquilo que escurecia minha aura.
- Aura? - perguntaria Raul, risonho.
Não, ele não acreditava naquelas coisas, mas acreditava que rir (de mim) era o melhor remédio. Não ia dizer nada, aliás, não queria ver Raul nem ninguém. Queria mergulhar no travesseiro felpudo que me fazia espirrar loucamente e esquecer de todo o resto - inclusive de Raul.
Mas ele logo chegaria e reclamaria pelo fato de eu ter deixado seu banheiro em petição de pântano. Só que não quis saber de Raul, só quis saber do meu banho naquele momento, deixar a água cair pelos ombros sempre tensos, pelos cabelos (mais curtos do que nunca), pelos braços e pernas longas. Sentir a água escorrendo pelo próprio corpo podia ser uma interessante experiência de auto-descoberta:
- Sim, eu sinto.
(Logo existo?)
Mas o que se fazer com que sentia? Barulho de chaves, é Raul na certa. Ouço meu nome arrastado. Finjo que não escuto e três minutos estou em sua cozinha, enrolada numa toalha e descascando uma maçã com ar displicente. Mas ele me conhece:
- Que voz era aquela no telefone?
- Nada, ué. Voz normal.
- Você estava monossilábica: sempre que fica assim é sinal de crise. O que aconteceu?
- Nada.
- De novo. Deixa de ser chata e desembuxa, Lola!
- Ou o quê?
Cruzei os braços e ele me olhou com um ar horrivelmente paternal. Poderia ter dado-lhe uma bofetada e ainda culpar os hormônios. Homens culpam os hormônios. Mas foi a pinta no nariz, a querida pinta no nariz que impediu que eu fizesse ou dissesse qualquer coisa. Eu o amava acima de qualquer coisa - e ele sabia.
- Olha, eu não tô bem, mas não quero falar sobre o assunto.
Sorri e entreguei-lhe a maçã descascada (Raul adora maçãs!). Ele me olhou perplexo:
- Acho que é a primeira vez que ouço que você não quer falar sobre um problema. Não quer mesmo conversar? Foi o namorado? O emprego? O chefe? Aquele babaca de novo? Você sabe que eu conheço gente no Jardim Nakamura...
Ri de Raul, de sua vontade maluca de me ajudar, ainda que por meios escusos.
- Não importa, mesmo. Hoje não quero conversar. Hoje não.
Ele me olhou com piedade e levantei a voz, como que para me defender:
- Vou sair para resolver umas coisas. Posso levar suas chaves? Meu apartamento tá sem luz:, cortaram. Esqueci de pagar a conta.
- Pode, caro. A casa é sua, você sabe.
- Eu diria o mesmo se meu lar doce lar estivesse em melhores condições. Bom, vou me arrumar. Já volto.
Voltei, já vestida e pintada. Palhaça? Talvez todas as cores e batons pudessem esconder o que vinha de dentro e de derramava por fora, mas não esconder de crianças:
- 'Cê tava chorando, tia? - o filho de Raul ao me olhar de relance.
Apareci na sala para me despedir de Raul - olhar fixo no televisor. Noticiário? Vício. Ele me beijou a mão e beijei-lhe a testa. Ele mandou que eu ficasse bem e simplesmente sorri. Ele não tinha mais nada a dizer. Nem eu. Exceto por, já junto a porta:
- Sabe o que eu mais queria agora?
- O quê?
- Saber escrever bem para poder expurgar tudo o que sinto. Tudo.
Ouvindo Private Road (Bent)
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