20 e poucos anos: Cicatrizes
Tibúrcio estava sentado sobre a minha barriga. Dormia? Ele ouviu um barulho e abriu seus olhos curiosos. Era um outro gato que miava dentro da minha barriga. Fome. Pura e simples fome. E pura e simples preguiça de me levantar e cozinhar qualquer coisa. Para quê? Raul nem ia passar a noite aqui... Cozinhar para uma pessoa só é desanimador.
Me bateu uma moleza e uma tristeza... Tão genuínas eram que achei que não deveria ir trabalhar, mas fui. A vida no banco: tudo aquilo do que eu quis fugir a vida inteira. Meu ganha pão.
Eu tinha deixado a porta aberta para o Raul. Logo ele estava na porta da sala, com as chaves nas mãos. Tão logo Tibúrcio o viu, pulou do sofá.
- Desculpa o atraso.
- Sem problemas. Aproveitei a espera para arrumar o guarda-roupa.
A sala estava cheia de roupas espalhadas.
- Preciso resgatar as minhas saias: tenho pernas tão bonitas...
- Tem mesmo, Lô.
- Vou começar pela xadrez. Ah, é meio colegial - parei e olhei para ele - Por que as colegiais fazem vocês babarem?
- Sei lá, tem coisas que a gente não sabe explicar, só sentir.
- Sei, entendi essa de sentir - peguei a saia xadrez nas mãos - Vou usar essa saia com mais frequencia.
- E o Roberto?
- Quem? Ah! Acabou... O cara fuma. Tem um narguilê, parece esses adolescentes: olha como eu sou cool, fumo narguilê!
- Bom, até aí você também fumava, Lô.
- Isso quando eu era uma imbecil de quatorze anos que achava que Danuza Leão captava a alma feminina!
- Bom, levar Danuza Leão a sério coloca seu caráter em xeque.
- E meu gosto seria colocado em xeque se eu continuasse a sair com aquele imbecil.
- O que deu em você? Fazia tempo que não te via assim...
- Parei de tomar meus remédios.
Ele riu.
- Não, é sério.
Raul me olhou muito sério e antes que pudesse dizer qualquer coisa, me levantei do sofá e dei-lhe um beijo suave. Ele tinha lábios doces.
- Como você é besta! Acredita em tudinho que eu falo... O fato, meu bem, é que eu detesto a minha vida... Quem me salva é o Chico!
Me joguei no sofá. Tão bom!
- Que Chico? Novo namorado?
- Não besta! O Buarque! É ele quem me acompanha rumo ao trabalho. De resto, odeio tudo. Quer dizer, tem você e a Clara. Mais uma meia dúzia de amigos, talvez. Só. Destesto o emprego. Minha vida é medíocre. Se eu tentasse me matar, na certa ia dar errado...
- Nem vem com esses papos, Lô. Auto-piedade não rola, né?
- Mas sabia que ela tinha razão?
- Ela quem?
- A Danuza Leão.
- Hã? Sobre?
- Cicatrizes do joelho, Raul.
- Como assim? Mas você não tem nenhum cicatriz no joelho.
- Mas tenho essa marquinha no nariz. Acho que se um cara me perguntasse do que é essa cicatriz eu casava! Era disso que ela falava.
- Do jeito que você é impulsiva eu acredito - ele riu - Mas agora eu fiquei curioso: do que é?
- Catapora - torci o nariz - Nessa droga de vida catapora foi o máximo que eu consegui.
- E o que você queria exatamente?
- Ah! Algo que me fizesse uma pessoa vivida ou interessante.
- Por que "ou"?
- Porque nem toda pessoa vivida é interessante.Ah! E o Tibúrcio!
- O que que tem ele?
- Também tenho ele na minha vida.
- Dá pra manter uma conversa linear? Você fica voltando e eu me perco!
- Linear? Mas eu sou linear!
- Acho que você fala em espirais... Bom, a moto está lá embaixo, valeu mesmo.
- Disponha. Mas se você perder as minhas fitas de Talking Heads eu mato você. And she was é a minha música.
- Você 'tá mais para Psycho Killer. Tenho medo de você! Nem quero te imaginar de moto. Mais uma doida dirigindo por aí - ele me olhou intrigado - Eu não sei o que você tanto espera.
- Nem eu.
Ele continuava me olhando daquele jeito. Eita mania de mexer no cabelo, parecia mulher:
- Pára de mexer nesse cabelo, Raul.
- Pelo menos eu tenho cabelo...
- Você nunca vai aceitar que eu quis cortar o meu, né?
- Mas tá curto demais! Mais curto do que o meu e olha que o meu cabelo nem é comprido. Você tinha aquele cabelo lindo e cortou mais curto demais.... Fala sério! E tudo isso pra quê? Para mostrar como você é "desapegada"? Ou para mostrar como você "despreza" os padrões valores lugares-comuns obviedades?
Raul ficava engraçado fazendo aspas no ar.
- Você é um quadrado. Acha que todo mundo tem que ser como se diz por aí. Eu não preciso dessas coisas...
(sempre que ele me lê assim, eu fico com medo)
- Ah precisa sim. Todo mundo precisa dessas coisas. Alguns mais, outros menos. Nem vem com esse papo.
- Acho que eu já sei.
- Hã?
- O que eu espero, Raul!
- Ah!
- Eu quero outra vida. Quero alguém que me tira dessa vida, que me mostre que a vida é mais do que isso, entendeu?
- Entendo melhor do que você pode imaginar, Lô.
Ele se sentou no sofá e acabamos passando a noite conversando, como sempre.
Ouvindo Tangerine (Led Zepellin)
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