20 e poucos anos: Feriado

Raul não podia ver meu rosto no escuro, mas adivinhou sem dificuldade pelo meu silêncio:

- O que você tem?

Eu não disse nada, olhava o fogo tremular do centro do círculo. Ventava muito àquela hora na praia. Tínhamos ido para o litoral com um grupo de amigos no feriado. Nem todos exatamente amigos, na verdade.

- O que você tem, Lô?

Sorri complacente: às vezes o Raul era meio cegueta.

- Viu o casal a beira mar?

Lá longe podíamos ver Zeca e aquela que mais tarde viria a ser sua esposa, Rosa.

- Acha que estão juntos? - Raul perguntou.

- Não vejo outro motivo para um cara e uma menina estarem sozinhos conversando a beira-mar por quinze minutos.

- Mas a Rosa sabe?

- Do que? Da minha paixão platônica pelo Zeca? Claro que sabe, todo mundo sabe, menos ele. O que tem de inteligente tem de tapado, nunca vi igual. Mas não esquento mais.

- Claro que esquenta, tanto que está aí, se remoendo em auto-piedade.

- Por que você tem que ser tão severo com as pessoas?

- Eu achei que você já tivesse superado o Zeca, eu já disse que ele não é cara pra você.

- Por que as pessoas sempre acham que sabem do que eu preciso?

- Conheço vocês dois e sei que não dá pé.
Aquela conversa estava me irritando e eu estava enjoada. Não tinha bebido nem ia beber: ficava deprimida quando bebia e de tristeza eu não queria o meu copo cheio. Já bastava o meu corpo. Era um consolo pensar que não tinha sobrado espaço para raiva, de modo que eu não maldisse nem quis afogar ninguém.

- Vou subir.

- Sozinha?

- É, não tô a fim de sermão nem de crítica.

Raul não disse nada. No fundo eu sabia que ele estava certo, mas eu não queria estar certa, eu queria ser feliz. Me vi confusa: não sabia o que estava realmente sentindo. Engraçado que eu, sempre tão decidida, me perdia quando ficava ainda que fosse só um pouquinho confusa. Eu perdi o chão, os pés pareciam afundar na areia úmida.

Subi com pressa para o apartamento - nem cinco minutos da praia. Tomei uma ducha. Liguei a TV: o filme pornô da madrugada me fez rir, eu nunca tinha entendido a dos filmes pornôs. Mas eu não queria rir. Peguei meu cobertor e me acomodei no sofá.

Cochilava de leve quando alguém bateu na porta. Era Rosa.

- Lô, abre a porta pra mim, por favor? Você ficou com a chave.

Sim, tínhamos combinado de voltar juntas porque só eu tinha a chave. Eu estava tão sonolenta que nem raciocinei direito: me enrolei no cobertor e abri a porta. Rosa estava acompanhada, abraçada com Zeca.

- Oi Lô.

- Oi Zeca.

Os dois entraram e foram para a cozinha. Dava para ouvir de longe as vozes de ambos, rindo.

Eu já tinha ouvido "Too drunk to dream", mas acho que agora era um momento "Too sleepy to dream". Eu não sonhava mais. E, naqueles breves instantes, percebi que o que realmente me incomodava não era o fato de ele estar apaixonado por Rosa nem o fato de ela corresponder o não. Me chateava a minha incompetência sentimental: todo mundo fala para você ser você mesmo e o que te dizerm quando você não consegue quem você quer? "Não era para ser". 

- Conformismo do caramba! - eu disse a Raul.

Tinha batido inistentemente na porta dele e mal ele a tinha aberto:

- Conformismo do caramba!

- Hein? O que você está fazendo aqui?
- Eu sou uma fraude!

- Não seja dramática, Lô!  Não, você é um chata auto-complacente.

- Eu fugi da praia para não ter que ver beijos e carícias dos dois e adivinha quem aparece no apartamento? E sabe o que é pior, eu percebi que eu sou o problema.

- É, é mesmo. Você gasta o tempo que poderia ser feliz se lamentando pelo que não dá certo! O Zeca nem é tudo isso, você sabe. E ainda que fosse...

- A questão não é essa! O fato é eu não sei o que estou sentindo. Acho que nem sempre a gente tem aquilo que a gente quer.

- Mimada - ele riu - Não, a gente não costuma ter aquilo o que a gente quer.

- Ai pessimismo! - eu sorri.

Raul suspirou.

- Quer entrar?

- Você tá acompanhado?

- Não, a não ser que Joaquim seja considerado companhia...

- Nha. Não era desse tipo de companhia que eu falava.

- Quer sair pra dar um volta. Tomar alguma coisa?

- Quero aprender a jogar sinuca. Talvez seja terapêutico. Mesmo porque é uma das minhas resoluções de fim de ano...

Ouvindo:

Comentários

Cayo Candido disse…
Sempre quando leio Raul me lembra um conto do Caio Fernando Abreu. Não que os personagens tenham algo em comum (só uma coisa), mas me lembra...
Daiany Maia disse…
Acho interessante como a gente precisa do outro pra ser feliz, coloca toda expectativa de felicidade no outro..um saco, mas é muito difícil não ser assim.

Gostei muito³ do seu blog.

"mas eu não queria estar certa, eu queria ser feliz"

beijo

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