Clara e o retorno

A tarde estava clara. Fazia um calor absurdo dentro da sala, mas lá fora estava fresco fresco. Clara passou calor e frio naquela tarde. Rendeu-se a incerteza climática como havia se rendido a incerteza da vida. Arrumou alguns papéis. Ganhou a rua rapidamente, passo firme. Sempre firme. Andava rápido, embora comesse lentamente - a infância de sorvetes desperdiçados, escorrendo por seus braços magricelos.

Ouvia uma seleção de cantoras de jazz, feita por Raul. Sim, suas fitas K7. Oh meu Deus! Lá estava alguém que resistia (bravamente?) à mudança. Mas a fita era boa, muito boa de fato. Sarah, Billie e Ella. Talvez em outra vida cantasse como Billie. Não, nem outra vida. Assoviava Solitude quando entrou no ônibus. Pensando em mil coisas ao mesmo tempo, misturavam-se e ainda assim podia distingui-las com clareza assustadora. Mas tal clareza não fez do enjôo coisa menos incômoda.

Haveria um leve tom de nostalgia? Talvez, mas voltou os olhos para frente, para o que estava por vir. Para quem estava por vir. Difícil aquilo. Louis às vezes esvoaçava pelas reentrâncias de seu cérebro. Bom, pelo menos não passava mais pelo coração. Mas, afinal, em que parte do corpo se guarda a memória? O corpo todo. Cada pedaço, pele, pêlo conta uma história. Uma, duas, três. Sobre o Big Bang, sobre o fim dos dinossauros, sobre a descoberta do fogo... Tudo. Tudo escrito, bordado, talhado em seus braços, pernas, rosto, boca, seios, mãos. Ombros. Principalmente ombros. Seu corpo guardava a história da humanidade.

Passou os dedos longos pelos cabelos. Aquela nostalgia de fim de tarde era uma coisa insuportável. Haviam rejeitado o seu mundo, um mundo que agora ela abraçava com um carinho terno. Quase maternal. Deveria tê-lo rejeitado também? Render-se a incerteza alheia? Não, já bastava a da vida...

... E a dos ônibus:

- Esse ônibus não faz esse caminho!

- Agora faz.

Novo itinerário! Delícia andar vinte minutos debaixo de chuva torrencial. Sem açúcar. Nem derreto nem encolho. Menina terra vira barro? As barras da calça sujas de barro. Os cabelos caindo pelo rosto, a água escorrendo pelo corpo. Maldito dia de blusa branca. Mais cinco minutos e as gotam começam a minguar e, com elas, a melancolia de Clara.

Ela chega ao novo edifício, sobe as escadas. Está à porta do novo apartamento. Novo porque sua vida ainda está encaixotada. Ligeiramente caótica. Mas desesperar jamais. E desde quando caos é sinônimo de desespero? Vida nova porque assim ela quis. Sorriu abobalhada para a porta de madeira maciça: lembrou-se que voltava para alguém. Havia alguém esperando por ela. Entrou correndo na sala jogou suas coisas no sofá despiu-se com uma rapidez nunca antes vista e correu para o quarto. 

Encarou-se menina-mulher no espelho. Mais mulher do que menina agora. Observava delicadamente aquele corpo que começava a ganhar novos contornos. Mais suaves. Arredondados. Sublimes até, talvez. Passou a mão pela barriga que começava a brotar - carinhosamente. Filhote de girassol. Amaria o sol do mesmo modo que ela. Sim, havia alguém esperando por ela. Dentro dela.

Ouvindo Love me or leave me (Sarah Vaughan)

Comentários

que texto LINDO, Larissa!
Claramente um dos melhores.
Lê Fernands disse…
deixou-se sem respirar = adorei!


bjsmeus

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