Leãozinho
Era um Leãozinho que tinha tudo para ser Tigresa, mas as linhas foram traçadas tortas sem régua nem lápis. Talvez algum carvão e algum suor. Sem sangue que o sangue secou. A ferida exposta onde a mosca botou ovo, virou larva. E eram larvas. Comiam a carne já carcomida. Derramar sangue seria um desperdício numa terra como aquela.
Leãozinho não sabia que idade tinha. Eu também não sabia. Só sei que se criou sozinha, meio selvagem, meio bicho, meio gente. Uns olhos assustados e famintos. Fome de tudo. Os dentes brancos e grandes, precisão de corte, de garras firmes. Corte de navalha. Os seus cabelos eram uma juba brilhante ao sol e ardiam como seus olhos de açaí.
Morava com o Barbosa, meio tio, meio dono, meio homem. A desgraça bateu a porta quando ele quis se mostrar homem por inteiro. Foi na época em que começaram a olhar Leãozinho com olhos cobiçosos, cheios de um desejo árido e estéril. Um dia Barbosa entrou em casa decidido. Cansou de só olhar o que podia ter só para si. Aquilo que era seu por direito. Aquilo o que os outros imaginavam em suas camas, selvagem e indomável. Um dia, depois de muito ruminar, decidiu que era ele o seu senhor e era ele quem iria domá-la, roubar dela aquele instinto de liberdade que despertava tanta inveja.
Trancou-se com ela no quarto numa tarde alaranjada de abril. Matou toda a sua vontade de uma só vez. Um gole seco e rasgante. Cortante como os dentes brancos de Leãozinho. Os gritos guturais eram ouvidos a milhas de distâncias, mas não havia ninguém para ouvir. Para que gritar se ninguém podia ouvir? Leãozinho semeou sua dor, seu pavor, seu ódio no vento, nos seus gritos doloridos. E dolorosos, caso alguém pudesse ouvir. Mas aqueles gritos eram como música para os ouvidos de Barbosa. E combinados aos toques e sabores, fazia com que ele se sentisse incrivelmente homem, viril. Já devia ter feito isso muito antes.
Assim que se satisfez, o que demorou, Barbosa trancou-a no quarto escuro. Bicho fica em jaula. Leoãozinho ali, acuada, semi-nua, a respiração ofegante, a alça rompida do vestido, o rosto marcado, trêmula como filhote novo. Mas já nada tinha de filhote. Caso houvesse luz, perceberia-se que eram outros os seus traços agora, embora os olhos se conservassem intocáveis. Era como se fossem ainda a única parte dela que ele não havia tocado. Era como se aqueles olhos fossem a única coisa que não pudessem tirar dela.
Era uma força grande, muito grande, do tamanho da noite que passou a devorá-la, enquanto era devorada por Barbosa, religiosamente. O casual que virava hábito. O pavor e a dor semeados no vento ainda. Que planta teriam dado, se plantados na terra? Nada, porque aquela terra não dava nada. Era uma miséria que consumia as pessoas com o calor a fome a cachaça o desespero a morte.
E muitos dias se seguiam assim. Infindáveis. Em muitas belas e mornas tardes alaranjadas, Barbosa se trancava no quarto com Leoãozinho. O cheiro das flores do deserto que incendiava o ar. E assim ela passava seus dias. Parecia ir amansando aos poucos. E Barbosa, sempre muito satisfeito.
Leãozinho foi perdendo o brilho da juba, foi baixando a cabeça, dobrando-se a vontade de Barbosa. De joelhos. Mas ele estava é bem deitado quando o encontraram, o estômago virilmente exposto, enquanto as larvas se regojizavam. E as moscas também, naturalmente.
Deitado na cama, ele contempla o teto do quarto. Chocado.
Leãozinho não consertou as linhas tortas. Nem escreveu seu nome na história. Analfabeta. Precisou ser Tigresa. O desconhecimento das letras não a poupou do desconhecimento da vida. E traçou e escreveu o seu destino.
Nunca mais foi vista. Tivesse ele bebido menos e dado ausência da faca que trazia no bolso da calça. Tivesse ele visto Leãozinho com outros olhos. Tivesse ele olhado em seus olhos, saberia que a sua força ainda era a mesma. Perene.
Comentários
( desnecessário o parênteses do fim ... perde o impacto ;)
é..o parenteses é desnecessário.
parabéns!