Amor
E aquela ferida que não cicatrizava? Por mais que cuidasse com desvelo e delicadeza, a ferida das suas costas não cicatrizava. O filete de sangue que não estancava, parecia sempre escorrer pelas suas costas. E pingava no tapete branco da sala. Tão inconveniente.
Ela se sentia tremendamente sozinha, apesar de ele estar lá. Ele nunca tinha se oferecido para lhe fazer um curativo e ela nunca tinha lhe pedido, por acreditar que certas coisas nós simplesmente não pedimos aos outros, cabendo a eles perceber o que para nós é óbvio e fazer algo a respeito. Não se pede carinho, por exemplo. "Exigir" carinho é algo mais estranho ainda. Entretanto, ela achou-se injusta e egoísta, como se fosse dele a obrigação de perceber ou adivinhar o que se passava com ela! Então, pediu-lhe que lhe fizesse um curativo.
Ele a olhou muito sério e saiu da sala.
Ele via todos os dias a dificuldade que ela tinha para alcançar a ferida, colocar o curativo e limpar o sangue. Todavia, nunca se manifestou a esse respeito. Quando muito olhava - e nada mais. Ele também sabia da sua dor, da dor daquele machucado aberto e de suas dores viscerais. Todavia, nunca se manifestava a esse respeito. A sua política dita amorosa era a da não-interferência, isto é, cabia à ela, e somente à ela, lidar com aquela situação e cuidar das suas feridas - ainda que não cicatrizassem. Para ele, isso é amor.
Ele se lembrava de que há pouco tinha quase perdido a perna. E fora ela quem lhe tinha cuidado. Ele não sabia, mas aquela tinha sido a declaração dela de amor. Noites sem domir, velando o homem que tinha pena de si mesmo e preferiria morrer a ficar sem a perna. E ela nunca tinha saído de seu lado, sempre amparando-o com palavras de incentivo e cuidando dele com um carinho cego. Para ela, isso é amor.
E ele se lembrava que não tinha gostado muito de tudo aquilo: ela interferia demais em sua vida. E com que direito? Embora ela tivesse sido lá importante a sua maneira, ela devia ter confiado que ele sairia daquela situação sozinho (a perna estava boa agora). Será que ela não confiava em sua capacidade? Então ele saiu da sala. Foi para cozinha e acendeu um cigarro, enquanto ouvia o choro dela na sala.
As lágrimas pingavam no tapete, dissolvendo o sangue fresco. Ela sentia que estava sendo drenada: sangue e lágrimas. Como odiava aquele sentimentalismo! Como odiava não saber lidar com as suas emoções e com o homem que fumava na cozinha! Como era difícil aceitar que era por ele amada, apesar de tudo aquilo! Como odiava quando ele lhe tocava as costas e tocava sua ferida exposta! Já tinha lhe dito mil e uma vezes o quanto aquilo lhe doía e ele continuava a fazê-lo. Ela não sabia que ele se esquecia do que ela dizia, ou se simplesmente julgava que fosse tudo bobagem dela...
Ela permaneceu uma muralha, como tinha se construído nos últimos tempos. E ele continuava a observar a muralha - e a admirava. Também observou a primeira mosca. E o primeiro abutre.
Comentários
adorei o texto... extremamente bem escrito! o tapete branco, o sangue, as lágrimas, tudo!
eu só acho q não é questão de carinho, mas de atenção. quem presta atenção sabe!