A permissão
Ela entrou na grande sala cinza com cheiro de bitucas de cigarro e café frio e imediatamente avistou uma longa fila. Depois de algumas horas gastas nessa fila, finalmente pegou o formulário certo e entrou na próxima fila. Sim, ela sabia que seria aquela burocracia, mas precisava da tal permissão a qualquer custo.
Enquanto esperava na longa fila por longas horas - tempo cronológico ou psicológico? - pensava em todas as justificativas para conseguir a permissão - desconfiava que o formulário não seria o suficiente. Finalmente chegou sua vez: o atendente, que mais parecia membro de uma banda de metal, não olhou para ela nem pediu que ela se aproximasse. Entretanto, ela assim o fez.
- Em que posso ajudá-la? - murmurou ele, sem querer ajudá-la.
- Estou aqui para pedir uma permissão especial. Está aqui o formulário já preenchido - disse ela, entregando-o ao atendente.
- Mas você não tem permissão para isso! - exclamou ele.
- Eu sei, eu sei - respondeu ela humildemente - justamente por isso estou aqui...
- O que você está pensando, hein? Acha que qualquer um pode ter uma permissão dessas, é? A Permissão para ficar Bravo (P.P.F.B) é para poucos.
- Sim, eu sei. Mas tenho bons motivos para conseguir essa permissão.
- Mesmo? Não sei não... - disse o atendente olhando uns documentos - Estou olhando o seu histórico e aqui consta que você sempre foi uma pessoa paciente. Pelo que eu leio aqui, você tem se tornado mais tolerante ainda. Diz também que você gosta das pessoas, de estar com elas e de cuidar delas, correto?
- Sim, isso está correto.
- Então não tem nada que pedir a P.P.F.B. - sentenciou ele - Pessoas assim não tem o direito de ficarem bravas: têm que ser legais o tempo todo.
- O que o senhor leu aí está certo, não nego. Entretanto, algumas situações que ocorreram nesse último ano mexeram muito comigo, sabe? Não quero fugir ao que está aí no meu histórico, reconheço a importância desse documento... Mas precisava mesmo da P.P.F.B. Fui acusada de ficar brava quando não devia, por ausência dessa permissão e não queria passar por essa situação desagradável de novo.
Apesar de estar longe de simpatizar com ela, o atendente resolveu dar-lhe uma chance:
- Certo. Vamos ver o que posso fazer por você, ou melhor, vamos ver o que você pode fazer por você: me diga quais são os motivos que, segundo você, lhe dariam o direito de adquirir a P.P.F.B.
- Está bem - ela limpou a garganta - Em primeiro lugar, sabotaram um projeto que venho desenvolvendo, na empresa onde trabalho.
- E?
- Ora, venho trabalhando nisso há cinco anos e agora, não só a minha credibilidade está em jogo, como também o meu emprego!
- Bobagem! - disse o atendente - Próximo item.
- Mas senhor, não sei se com a minha idade consigo outro emprego e cuido de uma mãe doente e meus filhos, preciso mesmo do emprego.
- Há coisas piores. Este item é irrelevante. Qual seria o seu próximo motivo?
Muito espantanda com tamanho desprezo, ela respirou fundo:
- Bem, meu ex-marido resolveu que quer a guarda dos nossos filhos. Ele nunca fez nada por eles, só paga a pensão, não fazendo mais do que sua obrigação. De resto, era como se não existissem. Meus filhos são tudo para mim e sei que meu marido não tem quaisquer condições de cuidar deles.
- E você acha que por seu ex-marido decidir querer ficar com seus filhos, você merece uma P.P.F.B?
- Bem, eu acho que sim. Mesmo porque, quando nos divorciamos, ele levou quase todas as nossas economias...
- E só porque seu ex-marido levou o dinheiro você merece a P.P.F.B.? Quem pediu o divórcio?
- Fui eu, não consta isso aí no meu histórico? - perguntou ela ironicamente, já irritada.
- Se foi a senhora quem pediu o divórcio, não vejo porque poderia querer uma P.P.F.B...
- Pedi o divórcio porque descobri que meu marido vinha me traindo com a minha suposta melhor amiga. - respondeu ela secamente.
- Ah! - exclamou ele em tom desaprovador - Então acho que a senhora não tomou conta dele do jeito que devia, não?
- O quê? - perguntou ela em choque.
- Além disso, deveria tomar mais cuidado com o julgamento que faz a respeito dos outros, no caso da "melhor amiga" - ele respirou fundo e continuou - Me parece que a senhora anda com alguns probleminhas, mas nada sério. A senhora parece estar numa maré de azar, mas não há nada que justifique o requerimento de uma P.P.F.B.
- Eu não quero brigar com ninguém, eu não quero esquartejar ninguém: só quero uma P.P.F.B., do contrário, vou acabar explodindo. Meu sangue não é 100% sangue de barata, estou infeliz e quero ter o diretito de estar brava também. Se para você tudo isso é tão pequeno, o que eu precisaria então para conseguir uma P.P.F.B?
Depois de alguns instantes em silêncio:
- Veja bem senhora, a senhora fala como se fosse algo pessoal. Não sou eu que acha tudo isso pequeno.
- O senhor não respondeu à minha pergunta - disse ela impaciente - O que diz aí o meu histórico?
- Nada sobre isso, senhora.
Ela tomou rapidamente o seu histórico da mesa e qual não foi o seu espanto ao ler a marca de um carimbo vermelho:
"PROIBIDA A OBTENÇÃO DE PERMISSÃO PARA FICAR BRAVO"
- Mas o que significa isso? - perguntou ela ao atendente.
- O que a senhora acabou de ler.
- Mas se você sabia que eu não poderia conseguir a P.P.F.B., por que todo o circo?
- Porque eu queria saber quais eram os seus motivos...
- Mesmo sabendo que não ia mudar nada? - disse ela visivelmente alterada e continuou - Você me julga como se fosse Deus! Quem você pensa que é? - disse ela, por fim, brava, na verdade, furiosa.
- A senhora acaba de ficar brava sem autorização. Guardas!
Antes que pudesse terminar de enforcá-lo, ela foi presa.
Comentários
O desfecho é ótimo! :D
hehe
Muitas vezes aquilo que nos enfurece é banal aos olhos de tantos "atendentes" por aí... mas para nós significa tanto!
Ser humano hoje em dia é difícil.