É Carnaval!

Pierrô, Sérgio Lopes
 
Rubinho está em frente ao espelho. Não sabe por onde começar a pintura. Quer ser outro, outra alma, outro rosto, outra cor, outra história. Como é o rosto de um Pierrô? Maldita hora em que foi escolher aquela fantasia - sugestão do irmão. Na ausência de melhor idéia - ausência de ciratividade - acatou a sugestão como ordem direta e imediata.

Os mais velhos já estão saindo para  rua, da janela se ouvem as marchinhas alegres e as pessoas animadas. Ansioso, Rubinho pede ajuda, mas o irmão tem pressa. Arlequim diz que precisa descer, seu bloco de rua já está saindo. Diz que vai chamar uma amiga para ajudar o irmão.

Todos já parecem ébrios pelo clima e Rubinho sem saber como criar a sua nova identidade. Por onde começar? Angustiado: é a primeira vez que sai no Bloco dos Corações Partidos. Nome piegas a beça, mas a diversão é grantida, garantiu o irmão.

- Rubinho?

Uma voz o chama e ele se vira: uma moça já fantasiada está junto a porta, vestido longo de época, com uma touca numa das mãos.

- Vim te ajudar a terminar de se arrumar. Todo mundo está lá embaixo, só falta você!
Voz vibrante que ecoa pelo quarto, janela a fora e ouvidos a dentro. Clara entra ligeira no quarto abafado, a despeito das janelas abertas. Um calor de fevereiro e março, sem chuva e sem a secura em contrapartida.

- O que é que falta? - ela pergunta se aproximando e não obtendo resposta, responde ela mesma - É a pintura, não é?

Boneco surdo-mudo acena suavemente com a cabeça. Um pequeno e frágil fantoche? Talvez. Ela some para dentro do banheiro veloz e da lá logo sai com um pequeno estojo. Passos firmes se aproximam dele, resolutamente. De repente, ela está próxima, muito próxima. Um cheiro quente e morno de sabonete inflama o quarto, janela a fora, narinas a dentro. Ela tem uns olhos antigos e despretenciosos, que o encaram com uma atenção superior e irritantemente maternal. 

Clara segura o queixo de Rubinho e em poucos e longos instantes, traça nele a alma do Pierrô. Está próxima, muito próxima e o olha com um cuidado extremo. E ele olha também, olha seus traços diferentes, outra alma traçada, familiar em alguns detalhes. Já a conhecia de outros carnavais e como adivinhando tal pensamento:

- Você não deve lembrar de mim, mas a gente já se conhece. Faz muito tempo, você era muito pequeno...

Ela tão... tão... mulher. E ele? No auge de suas espinhas, de seu erotismo reprimido, de sua liberdade podada, dos seu sonhos abafados, vontade doida de virar o mundo de cabeça para baixo... Como o quarto - insuportavelmente abafado, a despeito da brisa suave que entra pela janela e faz os cabelos de Clara suspirarem suavemente. Tudo de ponta-cabeça.

Clara finaliza a pintura com a lágrima no rosto. Rubinho quer lágrima de verdade para lavar o rosto e, de cara lavada, pedir que pinte seu rosto de novo. Mas só lhe resta:

- E você? Do que está fantasiada? - rascunha.

- Hoje sou a Colombina - ela sorri triunfal, puxando-o rapidamente quarto a fora e vida a dentro.

Ouvindo A banda (Chico Buarque)

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