20 e poucos anos: Sinceramente
Lô entrou irritada bufando na sala e eu já sabia até o que era: a máquina de lavar estava quebrada, o que fazia com que ao final de cada ciclo a roupa terminasse ainda encharcada. Ela se sentou no sofá, bufou uma última vez e espiou o que eu estava fazendo.
- São aquelas suas fitas?
Balancei a cabeça. Eu estava sentado no chão, procurando uma música numa das minhas várias fitas K7.
- Você já pensou que isso tá ficando ultrapassado?
Me virei para ela e fiz uma careta.
- Bom, também acho que baixar muitas da inernet é muito impessoal.
- E está cada dia mais difícil achar fitas virgens para as minhas gravações. Gravar CDs não é a mesma coisa, definitivamente.
- Não, não é mesmo. Mariana 3. O que posso encontrar nessa fita? Posso ouvir?
- Pode é claro. Tem Arnaldo Antunes, Frank Sinatra, Feist, Cat Power e um pouco de jazz.
Lô sorriu.
- Só você mesmo para fazer uma coisa dessas.
- É literalmente a trilha sonora da minha vida.
- Das suas paixões, você quer dizer. Acho isso tão bonito, você ter essas fitas todas com as músicas das suas namoradas. Ou quase-namoradas.
- Bonito? Tem gente que diz que é apego negativo o que eu tenho.
Lô se levantou e sentou perto de mim.
- Todo mundo é apegado a alguma coisa. E quem disser o contrário está mentindo. Mesmo. Você é apegado à boa música e as mulheres que de algum modo se conectam a isso.
- Acho que é o contrário: sou apegado às mulheres e à boa música que se conecta à elas. Mas não me sinto mal por isso.
- São lembranças suas, parte da sua vida. Também não te vejo preso em
casa, ouvindo as fitas o dia inteiro. Você tá tocando a sua vida, né?
- Sim, tenho até um encontro no sábado.
- Mesmo? Então alguém está se dando bem aqui. Chamei um cara para sair e ele nem deu sinal de vida. Mais uma vez fico sem saber o que está errado - ela respitrou fundo - Enfim, vou acabar descendo para o litoral com a Clara. Vou com aquele biquini vermelho.
- O que causa furor?
- Não caçoe de mim! Ele bem que me rendeu boas histórias.
- Sim, eu sei, você me deu uma prévia delas, mas não entrou em detalhes.
- Nem vou.
Ela sorriu de novo. Dei-lhe um suave beijo na testa.
- Mas o que você está procurando?
- Uma música.
- Qual?
- Tenho vergonha de dizer.
- Hã?
- Não gosto nem um pouquinho da banda, mas uma música deles caiu como uma luva.
- Entendo. Que música é? Posso te ajudar - disse ela começando a mexer nas fitas.
- Sinceramente do Cachorro Grande.
- Eca. Entendo porque você tem vergonha. Não tem nenhuma fita com Coltrane? Quero me intoxicar com ele hoje.
- Tenho sim, deixa eu ver.
Procurei numa pequena pilha à minha direita e lá estava o dito cujo.
- Está aqui - disse entregando-lhe a fita.
- Vamos trocar? - e Lô me entregou outra fita.
Era a fita que eu procurava.
- Mariana 2. Ela foi importante, hein?
- Bastante. Obrigado. E fique com o Coltrane o tempo que quiser. Tem Johnny Mathis e Elvis Presley também. Só cuidado com a fita, ela é única.
- Oba. Obrigada, Raul. Pode deixar que eu cuido bem da sua fita. Sei que ela é única, assim como a Mariana.
- Sim, é, mas por que você diz isso?
- Porque a fita do Coltrane é a Mariana 1.
Ouvindo Sinceramente (Cachorro Grande) e Naima (John Coltrane)
Comentários