Clara e o sonhador

Clara sentou-se sobre a cama. A colcha era macia e rosa-chá. Suspiro longo. Olhou para o rapaz adormecido ao seu lado. Certamente sonhava. E ela ali, tão acordada. Tão lúcida. Não se arrependia da noite passada, mas. Estava morno, apesar do céu nublado que se brotava pela janela. Era passado agora. E os minutos pareciam demorar a passar, enquanto ela amarrava o all star azul. 

Ele logo abriu os olhos, lentamente. Encarou o teto cinza para descer e pousar o olhar nas costas de Clara. Mais particularmente na pintinha perto da alça da blusa (sua pintinha preferida). Notou que havia algo errado: ela já vestida, pronta para. Onde você vai? surpreso. Pergunta boba, é claro que ia embora. Seu sorriso maternal dizia tudo. Mãe que abandona os filhos.

- Almas gêmeas nunca morrem.

- E você acredita nisso?
- Que elas não morrem?

- Não, que elas existem?

Seus olhos estavam abertos e parecia quase lúcido enquanto se sentava na cama, aproximando-se de Clara, escorregando a mão por suas costas. Tocou-lhe o rosto, levemente. Os olhos diziam: Sou sua. Era isso? Ele leu certo? Sabia ler? Mas os pés estavam prontos para partir, disso tinha absoluta certeza. O mistério era um véu que o cegava enquanto ela partia, partindo-o em dois.

Fragmentado, tentava se recompor do silêncio dos seus olhos que pararam de lhe falar. Não saberia dizer quanto tempo passaram olhando um para o outro. E ela evaporaria. Partiria como tinha chegado: suavemente. Mas então, como explicar a sua intensidade? Chegou como quem não queria nada, não prometeu nada. Só existiu, existia. Como é que aquilo tinha bastado? Não devia, não era certo.

Ela se levantou finalmente. Pegou a bolsa de couro marrom. E seus olhos castanhos eram de uma doçura de chocolate e café - apesar da partida, estimulante. Mas ele continuou sentado, mal sabendo que o fato de não ter se levantado era uma dos motivos da partida de Clara. O rádio-relógio despertou. Wake up alone. Conforme ela se afastava, a música parecia encontrar mais e mais eco no quarto cinza, que tomava conta de tudo, engolindo todas as cores e móveis.

E ele, mesmo acordado, continuava sonhando.

Ouvindo The white lady likes you more (Elliott Smith)

Comentários

Daiany Maia disse…
Gostei, muito mesmo.

A atitude de ficar sentando sempre revela algo maior. Não é leitura de sinais, é fato. A passividade exala pelos poros.

beijo
Daiany Maia disse…
ps.: gosto muito muito dessa música, aliás, gosto de todas da Amy, mas essa tem esse Q de soul, sei lá, música de época...
Acho que para uns, a cama chega a ser absoluta.
Cayo Candido disse…
Clara e os impossíveis...

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